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(Opinião) Entre o sonho das Índias Negras e a realidade do minério pobre (2)

                                                    

 

 

                                    

 

 

 

Por sua vez, o segundo e o terceiro dos detalhes enquadram-se já na trama da narrativa central sobre o direito de exploração da mina. Dão-nos nota da diferença entre a reivindicação moral do direito de explorar a mina e a sua reivindicação legal. Se do ponto de vista legal é o segundo detalhe que conta, o registo na Câmara, do ponto de vista moral é o acordo de cavalheiros quebrado que importa. Se o primeiro teria sido já e continuaria a ser julgado na justiça, no tribunal da opinião pública torna-se sobretudo necessário provar o segundo.

 

Custódio dos Santos alega a existência de um acordo verbal de cavalheiros (dividindo a exploração de sais de Potássio para uns e a de carvão para outros) que os seus “concorrentes-vilões”, os irmãos Ayres de Sá, teriam quebrado tentando registar a prospecção na mina do Espadanal. Todo o episódio que o torna “descobridor legal” da mina é descrito como se fora uma peripécia do universo do romance de aventuras (conscientemente ou não, verídica ou não): dado o acordo entre as partes, não seria preciso registar legalmente as tentativas de exploração. Só que, tendo tido notícia (utilizando talvez uma dose do que se poderia chamar hoje espionagem industrial) de que os rivais fizeram uma prospecção no Espadanal que confirmava a sua descoberta de lignite, Santos apressa-se (mais uma vez guiado por um “íntimo pressentimento”) a ir registar a sua prospecção na Câmara, o que consegue apenas por instantes já com os rivais dentro do mesmo edifício para o mesmo efeito. Estes, tendo tido conhecimento da sua presença, teriam primeiro esperado que saísse para depois, em desespero de causa, tentar ainda fazer o registo in extremis: “os Srs. Sás que continuavam no corredor, logo que viram sair o amanuense com dinheiro e um papel nas mãos, desconfiam por sua vez do que se passa, e entrando na secretaria, mesmo comigo lá dentro, apresentam ao chefe de repartição 21 registos de carvão! Este mostra-lhes o livro de manifestos de minas e o requerimento que eu já lhe havia entregado, com referência ao Espadanal, o que por completo desnorteia os Srs. Sás, deixando-os quase em absoluto fulminados!”

 

Esta segunda nota acrescenta portanto ao heroísmo visionário um toque de amadorismo que surge em destaque na economia do texto. O amadorismo serve simultaneamente como humilde reconhecimento de ignorância no campo da mineração (só depois deste episódio chegará do Alentejo quem domina realmente esta área), como forma de valorização do papel da intuição ao longo de todo o processo (intuição primeira inspirada na literatura, intuição segunda que vai guiando os esforços de prospecção, intuição terceira que vai permitir que o direito legal à exploração seja concedido) e uma desculpa para não ter registado a exploração inicialmente: “confesso, que, sendo absolutamente leigo no assunto a que me havia dedicado, julgava até que um registo, apenas, de carvão, seria o bastante para que ninguém mais lhe pudesse mexer, pelo menos na área da freguesia respectiva.” Aliás, este mesmo amadorismo simultaneamente alimenta e deixa em suspenso o sonho de riqueza porque não tem conhecimentos suficientes para analisar a dimensão económica da descoberta.

 

O terceiro detalhe curioso insere-se na reivindicação moral do direito a explorar as minas. O autor recorre à credibilidade da palavra de uma personagem hoje esquecida mas relativamente famosa na época. Trata-se do Padre Himalaya que surge aqui como a pessoa que levanta em conversa a questão dos registos e como tendo sido quem selou em nome dos rivais o pacto não escrito com o autor (que, sem recorrer a uma fonte independente, não seria, claro, confirmável).

 

Recorde-se que este é uma figura peculiar. Precursor das energias renováveis, é o inventor de um forno a energia solar destinado a criar fertilizantes para a agricultura (projecto vencedor da Exposição Internacional de Saint Louis de 1904), de explosivos também com finalidades agrícolas, tendo ainda tentado inventar um canhão para fazer chuva... Apesar de nenhum dos seus inventos ter sido aplicado em larga escala, dos seus múltiplos falhanços e da mistura de técnicas científicas convencionais com outras consideradas menos convencionais, este vegetariano, estudioso da botânica e da naturopatia, chegou a granjear fama internacional (e ainda hoje existe em França uma sociedade com o seu nome). Localmente, Rio Maior é apenas uma mais entre as suas muitas paragens havendo notícias de que terá pesquisado carvão e manganês na região e de que terá assumido brevemente o cargo de director técnico de uma fábrica de adubos químicos. (3)

 

Ironicamente, o celebrado visionário das energias renováveis surge nesta história como garante da exploração mineira introduzindo assim uma nota estranhamente dissonante na harmonia de uma história até agora apenas, orgulhosa e utopicamente carbonífera. Refira-se, em abono da verdade, que também em Verne alguns momentos realistas ensombravam já o discurso mais luminoso sobre a realidade mineira, assumindo-se que os combustíveis fósseis são finitos face ao crescimento económico rápido. À sua maneira também um visionário, o discurso de Verne enfrenta porém esta angústia de finitude (já de si apresentada inicialmente como longínqua) através dessa descoberta do filão gigantesco que atira para ainda muito mais longe essa finitude. E, contudo, no meio da felicidade alcançada nas Índias Negras persiste a questão: “A hulha faltará um dia – isso é certo. Um desemprego forçado impor-se-á então às máquinas do mundo inteiro, se um qualquer novo combustível não substituir o carvão.” A utopia esculpida a carvão tem portanto um prazo não sendo uma história do tipo “felizes para sempre”. E pessoas como o padre Himalaya irrompem lembrando-nos que, para além disso, existem outros custos associados a esta exploração e que existem alternativas.

 

Para além disso, a figura do inventor que procura fintar as adversidades através da sua engenhosidade para desta intervenção humana fazer um reencontro com a harmonia natural pode ser vista como um contraponto com a figura do próprio pesquisador que descobre uma riqueza natural já pronta a explorar.

Só que este primeiro encontro de Rio Maior com as minas, feito de cavalheirismos aventureiros, de ciências e técnicas quase exactas e amadorismos, resultará num impasse que deixa incumprida a promessa do enriquecimento. O espólio natural ao início tão atractivo que é disputado juridicamente entre vários grupos concorrentes dará lugar a uma exploração económica residual durante anos. Note-se a este propósito que em todo o texto que analisámos nenhuma referência à pobreza do carvão é feita ao passo que esta referência ao “carvão pobre” será constante nos períodos seguintes. Mas se o tempo da utopia imediatista parece terminar com esta latência produtiva, o anseio do desenvolvimento local baseado na mina regressará apesar desta pobreza do carvão. Agora que o explorador amador deixa o palco, os engenheiros e políticos entrarão em cena na tentativa de viabilizar o empreendimento.

Figura 2 - Manuel António Gomes/ Padre Hymalaia (1868-1933). Fotografia datada de 1902. © Arquivo Professor Jacinto Rodrigues. Publicada por Luís Tirapicos em: "Ciência em Portugal. Personagens e Episódios".

(3)

Sobre o Padre Himalaya ler a biografia: Jacinto Rodrigues, A Conspiração solar do padre Himalaya - Esboço biográfico dum pioneiro da ecologia. Porto, Cooperativa Árvore, 1999

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