top of page

Memória Oral de Arlino Ferreira dos Santos

                                                    

 

 

                                         Por Augusto Tomaz Lopes

                                            

 

 

INTRODUÇÃO

O texto que tenho o grato prazer de publicar resulta de conversas com o meu/nosso amigo Arlino Ferreira dos Santos havidas, é bom lembrar, de janeiro a novembro de 2008. Razões diversas foram sempre adiando, quer a continuação das conversas quer a sua própria publicação. Desse desiderato resultou uma abordagem cronológica desde a chegada do senhor Arlino e da família à então vila (1944), até às primeiras eleições autárquicas em Rio Maior (1976).

Escrito na primeira pessoa, o texto retrata a visão própria do cidadão Arlino Santos, inscrevendo-se nele a análise particular sobre as coisas, as personagens e os acontecimentos que teve oportunidade de vivenciar. Deve dizer-se que é uma visão optimista, de alguém que está bem com a vida e que tem consciência de não ter sido impróprio e/ou desagradável com ninguém.

 

Arlino Santos, um Homem modesto e generoso que nunca esqueceu donde veio, nunca se mostrou melhor que qualquer outro, nunca praticou a vaidade, a soberba, a idolatria. Agora que nos deixou (1936-2021), regista-se o seu testemunho para memória futura. Até sempre.

 

Fevereiro de 2021

Augusto Tomaz Lopes

  • Nasceu em Cabrela, Vendas Novas, a 22 abril 1936.

  • Curso Comercial, feito em Rio Maior para onde veio residir em 1944.

  • Foi Escriturário/Guarda Livros, de 1953 a 2004, altura em que se reformou.

  • Foi militante do Partido Socialista, desde junho 1974.

  • Foi Membro da Comissão Administrativa da CMRM, de 1974 a 1976.

  • Foi Presidente da Assembleia Municipal de Rio Maior, de 1994 a 2005.

  • Foi sócio efetivo, n.º 205066, do Sport Lisboa e Benfica.

  • Foi sócio efetivo, n.º 62, do Clube de Natação de Rio Maior e Presidente do Conselho Fiscal, de 2007 a 2020.

  • Foi sócio efetivo, n.º 2, da União Desportiva de Rio Maior, e Presidente da Mesa da Assembleia Geral.

  • Foi sócio efetivo da Associação de Bombeiros Voluntários de Rio Maior.

  • Foi sócio efetivo da Associação de Educação Especial o Ninho.

  • Foi sócio efetivo, n.º 101, da EICEL1920, Associação para a Defesa do Património.

 

INFÂNCIA E JUVENTUDE

A história da minha vinda para Rio Maior começa em 1944, com a chegada de um miúdo de 8 anos, acompanhado de um irmão de 6 e outro de 2 anos. São três garotos alentejanos, filhos de dois beirões da Beira Alta, o meu pai do concelho de Castro d’Aire e a minha mãe de Mangualde. Os meus pais tinham ido para o Alentejo junto com aquelas «levas» de trabalhadores que anualmente procuravam no Ribatejo e no Alentejo ganhar a sua subsistência. Foi aí que os meus pais se conheceram, casaram, e do casamento nasceram quatro filhos, dos quais apenas nós os três (por morte de um) acompanhámos a nossa mãe que se veio juntar ao pai que já se encontrava em Rio Maior.

 

O meu pai tinha trabalhado na aldeia de Cabrela, numas pedreiras, mas depois resolveu ir para as minas de carvão de Santa Susana, no concelho de Alcácer do Sal. Inicialmente mineiro, a categoria então mais baixa de entre as de «mineiro, safreiro, vigilante e capataz», passou rapidamente para «vigilante», fruto, certamente, de alguns conhecimentos e de mais algumas competências, e ascendeu ao cargo de «capataz». Foi nessa condição que veio para Rio Maior, quando as minas de Alcácer do Sal fecharam em 1944 porque a guerra estava no fim e os mercados já não precisavam tanto de carvão. A empresa inglesa decidiu encerrar as minas.

 

Chegamos a Rio Maior em finais de agosto de 1944, nas vésperas da feira anual de setembro, as primeiras impressões que tenho da vila estão a ela ligadas. Naquela época a feira durava três dias (um, dois e três de setembro), mas as pessoas vinham alguns dias antes e partiam alguns dias depois. Portanto, recordo a chegada dos carros de bois que vinham das aldeias carregados de produtos, com aquela chiadeira própria.

 

Ora, para um miúdo que acabava de chegar, que nunca tinha assistido a uma feira, foi um acontecimento memorável. Além do mais, havia ainda outro aspecto ligado à feira de setembro que atraía muito a miudagem e que, para mim, foi outra grande novidade. Era a chegada do circo a Rio Maior, com o desfile de todos os artistas pelas ruas da vila o que, como se pode calcular, teve em mim um grande impacto.

 

A segunda impressão foi alguns dias depois. Nós viemos viver para uma casa no centro de Rio Maior, perto da Praça do Comércio, que era então a praça da fruta e do peixe. Era aí, de tarde, quando as bancas eram desmontadas, que se reunia a rapaziada para grandes jogos de futebol, na altura com bola de trapos, mais tarde de borracha. Era aí que as crianças socializavam. Foi aí que todos fizemos grandes amizades que perduraram pela vida fora.

 

Outra grande impressão foi a entrevista que a minha mãe teve com o professor Amílcar Andrade, professor da aula masculina. Eu vinha com a primeira classe, já feita no Alentejo, e não queria perder esse ano. O professor Amílcar atendeu-nos muito bem, pôs-nos à vontade, e disse que me ia fazer um exame(zinho) prévio. E fez, e lá entrei para a segunda classe. E ainda bem, porque o professor Andrade era um professor extraordinário, com os métodos pedagógicos de então, mas que preparava bem os alunos para depois cada um seguir o seu caminho. Acabo a escola com 11 anos, em 1947, sempre com o professor Amílcar Andrade.

 

Uma outra impressão que me ficou, também desses primeiros anos, foi em maio de 1945 com o acabar da segunda guerra mundial. Em Rio Maior, como penso que em todas as cidades e vilas do país, onde houvesse banda, a banda saía para a rua a tocar, comemorando e levando à frente a miudagem. Porque muitos de nós, jovens, não tínhamos a noção exacta do que tinha sido a guerra, tínhamos dela um conhecimento lateral resultante dos seus efeitos, da escassez de produtos, das filas de espera para adquirir pão. Recordo as ruas cheias de gente porque em Rio Maior a grande maioria da população estava com os aliados. Havia até um grupo de pessoas, o pai do senhor Alberto Goucha, o pai do senhor José Pulquério, e outros, que ouviam regularmente a BBC.

 

Recordo igualmente a minha primeira ida ao médico. Eu era um miúdo enfezado, com pouco peso, e a minha mãe soube que havia um médico muito bom em Rio Maior que era o Doutor Calisto que tratava muito bem os doentes e, aos mais pobres, nem levava dinheiro pela consulta, como era o nosso caso. A minha mãe levou-me então lá para ver o que é que ele achava, uma vez que eu era muito magrinho. O médico auscultou-me e decidiu que eu «não tinha nada, talvez precise de uma melhor alimentação, mas calculo as dificuldades que a senhora tem, mas faça os possíveis para dar mais alguma coisa, mais leite ...». Esta foi, portanto, outra das boas impressões proporcionadas por um médico que, infelizmente, veio a falecer uns anos depois com tifo, quando estava de férias na Nazaré. Tenho a ideia de que foi o maior funeral alguma vez existente em Rio Maior, nunca se juntou tanta gente, de Rio Maior, das aldeias vizinhas, da Nazaré inclusive.

 

Outra das impressões fascinantes, que mais tarde me irá acompanhar pela vida fora, foi o assistir à primeira sessão de cinema. Tratava-se, na época, de cinema ao ar livre, porque Rio Maior tinha tido uma sala de cinema, que ainda existia, só que a máquina tinha ardido. Por isso, o cinema que aparecia era «ambulante» e acontecia na rua, no largo em frente à casa da D. Ivone Soveral, onde hoje se encontra a entrada para o parque de estacionamento subterrâneo. Havia algumas cadeiras, mas a miudagem sentava-se à frente, no chão, e foi aí que assisti ao primeiro filme chamado «A Caminho de Santa Fé», com Errol Flynn, um filme de cowboys que foi uma verdadeira festa.

 

Mais tarde o cinema abriu de novo em Rio Maior através da Sociedade de Cinema Riomaiorense Lda., por força do entusiasmo do senhor José Luís de Oliveira, que comprou uma máquina de projecção nova, fazia os contratos e geria todo o cinema. Deve dizer-se que o cinema, enquanto empreendimento comercial, dava poucos ou nenhuns lucros. No entanto, conseguiu aguentar o cinema tendo a sua gestão sido continuada até 1982 pela minha mulher.

 

Dir-se-ía, portanto, que o «bichinho» do cinema que ainda hoje me acompanha nasceu pela força da ação do professor Andrade que pagava aos melhores alunos, semanalmente, um bilhete para uma sessão de cinema, grupo no qual me incluía. Mais tarde, já a trabalhar e a frequentar a escola comercial nocturna, passei a ter um lugar cativo que mantive até ao fecho das instalações. Creio que passaram muito poucos filmes em Rio Maior que eu não tenha visto o que, em certa medida, também ajudou à minha formação sociocultural. Deixe-me acrescentar que, fazendo jus a esta antiga tradição já tratei de reservar no novo Cineteatro Municipal o mesmo lugar cativo (H7) para todas as sessões de cinema ao sábado.

 

Após a escola primária fui trabalhar o que, na época, era normal nas famílias com menos posses, como empregado de balcão numa drogaria que tinha acabado de abrir na vila. A «Drogaria Azul» era propriedade de um senhor reformado dos correios que tinha vindo viver para Rio Maior. Era um negócio de pouco lucro, mais até para o proprietário estar entretido. Mas foi esse senhor, felizmente, que por inícios de 1948 me incentivou a continuar os estudos, a matricular-me na Escola Comercial, uma vez que ele próprio me pagaria as propinas.

 

Ora, foi nesse mesmo ano lectivo que o Curso Geral de Comércio passou a ter um currículo de cinco anos quando antes era de apenas três, com novas disciplinas, dando aos alunos uma muito melhor preparação. As aulas eram noturnas, das dezanove às vinte e três, porque os professores tinham outras actividades e os alunos, muitos deles, também estavam empregados. Muitas vezes, depois do trabalho e das aulas, ainda ia para casa estudar à luz da vela, até à meia-noite. Foi assim que consegui acabar o curso nos cinco anos previstos. Éramos cerca de quarenta alunos no primeiro ano e cerca de dez no quinto, tendo ficado diplomados apenas quatro, eu próprio, o Henrique Fialho (infelizmente já falecido), a Maria Adélia Gomes e o Mário Pedroso de Carvalho, os quais actualmente são marido e mulher.

 

Em 1999 a passagem pela Escola Comercial foi revivida num almoço que juntou muitas dezenas de antigos alunos aquando das comemorações dos 75 anos da instituição, festa organizada por várias pessoas entre as quais o professor António Feliciano Júnior. Na qualidade de Presidente da Assembleia Municipal de Rio Maior fui convidado a usar da palavra e eu aproveitei também para falar na qualidade de ex-aluno. E disse que, apesar de ter sido difícil para um aluno trabalhador estudante, tinha tido a oportunidade de completar o curso sem perder nenhum ano, sendo que isso se tinha ficado a dever a vários factores.

 

Desde logo aos meus pais que fizeram um enorme sacrifício para que o filho mais velho estudasse, mas também aos meus irmãos pela compreensão que tiveram, igualmente aos meus antigos colegas, de quem guardo sempre uma óptima recordação e um carinho muito especial pela vivência extraordinária que realizámos entre nós, também aos funcionários da escola, que eram poucos, mas cujo apoio nos foi sempre importante, mas sobretudo aos professores: ao senhor Casimiro Pereira da Silva, que era o Director da Escola e professor de história, geografia, mercadorias e técnica de vendas; ao senhor Fernando Cova Gonçalves, oficial do exército reformado, que era comandante dos bombeiros e solicitador, era o professor de matemática, cálculo comercial, francês e físico-química; ao Dr. Laureano Santos, advogado em Rio Maior, professor de português e direito comercial; ao senhor Júlio Carreira Pereira de Almeida, contabilista da empresa João T. Barbosa, professor de dactilografia, noções gerais de comércio e contabilidade; ao Dr. Augusto Pedro Branco, que tinha vindo para Rio Maior para exercer o cargo de Chefe de Secretaria da Câmara Municipal, creio que era formado em histórico-filosóficas, era o nosso professor de inglês; ao Dr. Fernando Sequeira Aguiar, que nos dava as aulas de higiene e saúde; por fim, ao professor António Feliciano Júnior, que leccionava desenho, caligrafia, trabalhos manuais e canto coral. Portanto, acho que devo a este conjunto enorme de gente, e a muitos outros, a minha formação.

Augusto Tomaz Lopes
Figura 1.jpg

Figura 1 - Arlino Ferreira dos Santos.

© Colecção Arlino Santos. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

Figura 2.jpg

Figura 2 - A Praça do Comércio. © Fotografia Luciano Rodrigues. Colecção Dra. Fernanda Barbosa, Arquivo do jornal O Riomaiorense.

Figura 3.jpg

Figura 3 - O Professor Amilcar Andrade.  Década de 70. © Colecção Rui Andrade, Arquivo do jornal O Riomaiorense.

Figura 4.jpg

Figura 4 - Antigo Cine-Teatro Riomaiorense, Anos 30. © Colecção António Feliciano Júnior. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

Figura 5.jpg

Figura 5 - Antiga Escola Comercial de Rio Maior, 1999. © Colecção Nuno Rocha. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

bottom of page