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Memória Oral de Arlino Ferreira dos Santos (3)

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Figura 9 - Estrada Nacional No. 1, vendo-se a vila de Rio Maior ao fundo, enquadrada pela Serra dos Candeeiros, ca. 1958. © Colecção Manuel Magalhães. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

                                                    

RIO MAIOR NOS ANOS 60 (SÉC. XX)

 

No início dos anos 60 a vila de Rio Maior era, no contexto regional, um lugar de passagem. A estrada nacional número 1 era a mais importante das ligações da vila ao exterior, uma vez que ligava Lisboa a Coimbra e ao Porto e essa ligação, como se compreende, faz circular mercadorias, pessoas, notícias e conhecimento. A estrada nacional 114 era a grande ligação entre Caldas e Santarém, as duas cidades regionais mais importantes e com as quais os riomaiorenses mais se encontram ligados por questões culturais e económicas. A estrada de Alcanede era, igualmente a outra grande via de ligação ao exterior do concelho, também asfaltada. Havia também estradas a ligarem todas as freguesias à sede do concelho, praticamente todas em «macadame» (não asfaltada), estradas com todos os defeitos que então tinham, em termos de piso e de traçado. O grande desenvolvimento rodoviário do concelho só irá acontecer depois do 25 de Abril. Em termos de saneamento básico, que eu me recorde, já havia algum na vila tendo sido no início desta década de 60, de resto, que se construiu a primeira ETAR. Mesmo em termos de energia eléctrica, que existia na vila desde os anos 30, muitas das residências particulares não tinham ainda luz. Também algumas residências não dispunham ainda de água canalizada sendo, aliás, verdadeiramente excepcional as que – nas freguesias – dispunham de tais equipamentos.

Trata-se, portanto, de uma comunidade ainda muito tradicionalista e presa a um passado cheio de dificuldades. No mar destas dificuldades a vila tem, no entanto, uma instituição que se apresenta como um oásis. Tenho, de resto, um laço muito estreito com o Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Rio Maior (figura 10), ainda que por um motivo muito desagradável. Foi depois de chegarmos a Rio Maior, quando a minha mãe adoeceu gravemente e foi tratada pelo Dr. José Vieira, médico do Hospital da Misericórdia, foi a ele que se deveu o seu restabelecimento. Era uma instituição de elevado serviço público, razoavelmente bem apetrechado e empenhados técnicos, que continuou nas décadas de 50 e 60 a responder às necessidades da comunidade. No entanto, a sua subsistência não era fácil tendo a Mesa da Santa Casa promovido um número apreciável de «Cortejos de Oferendas» com assinalável êxito e que muito ajudavam à sua gestão. Neles estavam representadas todas as freguesias que doavam os seus melhores produtos cuja receita vertia para a Misericórdia. É de salientar a resposta que a comunidade dava. Quanto ao senhor Provedor, que me recorde, não conheci no exercício dessas funções outro que não seja o Dr. Calado da Maia, o qual tem tido ao longo de todos estes anos uma actuação muito meritória na Provedoria, ajudado também por um conjunto de pessoas que têm dado o melhor de si.

 

Outra instituição marcante na comunidade riomaiorense são os seus Bombeiros (figura 11). Recordo o seu Comandante e meu professor na Escola Comercial, o senhor Cova Gonçalves. Dos meios de que dispunham recordo um carro Chevrolet, cuja madrinha foi uma filha do Dr. João Mesquita de Sá, mais tarde casada com o Dr. Carlos Borges. Também os bombeiros, nestes anos 60, viviam com grandes dificuldades, mas muita «carolice». Os sócios eram poucos, a quota diminuta e as despesas elevadas. Sou um sócio já muito antigo, tendo chegado a fazer parte de um dos seus Órgãos Sociais. Uma das formas de angariação de fundos foram os «bailes dos bombeiros», muito concorridos e com grande êxito. Recordo que com o aparecimento da televisão muitas das actividades nocturnas desapareceram pela concorrência gerada, mas os bailes continuaram sobretudo nas épocas festivas do carnaval e páscoa, disputados com outras duas associações, o clube de futebol ‘Os Mineiros’ e o clube ‘Riomaiorense’, este mais ligado à elite cultural e económica do concelho. Só mais tarde o Estado se dá conta do serviço dos bombeiros e começa a dar subsídios para aquisição de viaturas. O único grande acontecimento que me recordo envolvendo os bombeiros foi um grande incêndio na Casa Castro, ali na praça do comércio, que causou grande impacto na vila. Como não havia muitos carros nem muitos acidentes, nem tantos incêndios florestais, a actividade dos bombeiros também era esporádica.

 

Relativamente à Igreja não sei se serei a pessoa mais adequada para falar sobre ela uma vez que sou agnóstico, até por influência familiar. Os meus pais embora oriundos de meios rurais nunca foram muito assíduos à missa nem nunca me obrigaram a ir à catequese, embora a tenha frequentado aqui em Rio Maior. Mais tarde, com a ida para a escola comercial, fui deixando de estar ligado à Igreja. Mas recordo a construção da Igreja Paroquial, nos anos 60, e lembro-me das sessões de esclarecimento dos arquitectos da obra, tanto da Igreja como do Tribunal (figura 12), cuja tipologia saía fora dos cânones. A Igreja, de resto, veio a ser construída no antigo campo de futebol da Casa do Povo, onde tantas vezes eu jogara para os campeonatos da FNAT. A religiosidade riomaiorense diz-me pouco e agora, como dantes, o mundo católico que frequenta a missa é escasso. Conheci ainda o velho padre Quartilho que vivia junto à Igreja da Misericórdia, mas estou convencido que o padre Armando veio substituí-lo exactamente com a incumbência de construir uma Igreja Nova. E conseguiu mobilizar as pessoas, católicos e não católicos. Sinto, no entanto, que a religiosidade era fraca e muito ligada às pessoas de mais idade, mas esse não era um problema local e muito menos nacional.

 

No plano desportivo, e na década de 60, existem ainda o «Clube de Futebol dos Mineiros» que tinha sido fundado em meados da década de 40 pelos directores da EICEL, um dos quais era dirigente do Clube de Futebol ‘Os Belenenses’, razão pela qual os ‘Mineiros de Rio Maior’ acabam por ser filial do clube de Belém e equiparem com as mesmas cores. O clube chegou a ter uma equipa muito boa nos anos 50, inclusive a disputar a segunda divisão nacional, uma vez que vinham trabalhar para Rio Maior muitos jovens com grande aptidão para a prática do futebol e aos quais os directores da mina davam a possibilidade de terem um emprego mais «leve» para treinarem e jogarem em boas condições ao domingo. Claro que antes já se jogava futebol em Rio Maior disputando-se jogos amigáveis, não federados. Em princípios da década de 60 havia já outro clube, o Clube Desportivo Riomaiorense, que não se dedicava ao futebol, mas do qual fui praticante (de ténis de mesa) e Presidente da Direção, quando o Prof. Amílcar Andrade foi trabalhar para Moçambique. O Clube Desportivo Riomaiorense também se dedicava à prática do hóquei em patins, prática trazida para Rio Maior por um jovem que trabalhava em Coimbra, o Américo Sequeira. Inicialmente praticavam no ringue da esplanada, depois fizeram um ringue de cimento no Jardim Municipal.

 

Mais tarde acontece a fusão dos dois clubes tendo surgido a «União Desportiva de Rio Maior» fusão que foi, em minha opinião, benéfica para os praticantes e para a vila uma vez que o clube ganhou outra dimensão e outra projecção. No entanto, deve dizer-se que o futebol em Rio Maior nunca arrastou multidões, nunca as assistências aos jogos ultrapassaram algumas centenas nem, sequer, o relacionamento do clube com a cidade e os meios económicos foi fácil, bem pelo contrário. E não foi por falta de vontade ou pouca perseverança das sucessivas direções. Na verdade, o clube nunca beneficiou do apoio substancial das empresas nem nunca se transformou num veículo publicitário da economia riomaiorense. Os mecenas, e foram alguns, sempre ajudaram o clube numa perspectiva de manutenção e nunca pensaram em «voos mais altos».

 

Estes anos 60 são também anos de muita mudança, no país como em Rio Maior. A guerra nas províncias ultramarinas veio alterar substancialmente a vida quotidiana da maioria dos riomaiorenses. Em primeiro lugar porque na pacatez dos costumes da terra ninguém estava à espera de uma coisa daquelas e as primeiras imagens que se receberam foram, de facto, de um dramatismo atroz. É claro que a primeira reacção da grande maioria das pessoas foi no sentido de que «aquilo» tinha que ser reparado, combatido. Depois, ao longo da década de 60, isso foi-se atenuando pelo país e mesmo em Rio Maior, que não é uma terra muito aberta, começou a «ver-se» que alguém tinha tido alguma «culpa» naquilo que se passou, que os autóctones tinham sido bárbaros, mas que lhes assistiam algumas razões para terem dado início a uma guerra.

 

Portanto, num primeiro momento, penso que todos estivemos de acordo no envio de tropas para Angola. Só mais tarde, com o decorrer de uma guerra sem solução, com os nossos filhos enviados em levas sucessivas, alguns deles sem regresso e outros com graves problemas mentais, é que se começa a sentir também em Rio Maior um sentimento de revolta. Eu próprio, não de forma directa porque não estive em África nem sequer fiz tropa, mas por via do meu irmão mais novo que esteve cinco anos em Angola, vivi por dentro o drama da guerra e tive mesmo que ocultar dos meus pais a posição em que o meu irmão se encontrava. Tenho a noção de que nos finais dos anos 60 a grande maioria desejava que «aquilo» acabasse, tínhamos a sensação de que o conflito só podia ter resolução política, nunca militar. As elites locais, que eu me recorde, nunca promoveram a adesão maciça à causa do Ultramar sendo, de resto, alguns deles declarados opositores.

 

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Figura 10 - Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Rio Maior, Anos 40. © Colecção António Feliciano Júnior. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

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Figura 11 - Antigo Quartel dos Bombeiros Voluntários de Rio Maior, 1956. © Colecção António Feliciano Júnior. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

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Figura 12 - O Palácio da Justiça de Rio Maior, ca. 1962. © Colecção António Feliciano Júnior. Arquivo do jornal O Riomaiorense.

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Figuras 13 e 14 - As equipas do Grupo Desportivo da EICEL, mais tarde denominado Clube de Futebol "Os Mineiros" (em cima), e do Clube Desportivo Riomaiorense (em baixo), perfiladas para disputar um encontro de beneficência a favor do Hospital da Misericórdia, 1 de Janeiro de 1945. © Colecção Joaquim Faria Ribeiro, Arquivo EICEL1920.

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