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(Opinião) Entre o sonho das Índias Negras e a realidade do minério pobre (4)

                                                    

 

 

                                    

 

 

 

A segunda dimensão marca um contraste forte com o amadorismo da prospecção inicial da mina. Agora parece que só tem cabimento o Estado-estudo procurando-se através deste decreto-lei fazer “um esforço sistemático, coordenado pelo aparelho de Estado e participado por entidades privadas, de identificação dos recursos mineiros efectivamente disponíveis, de alteração do estatuto do país enquanto área de reserva ou fornecedor permanente de matérias-primas. Visava-se acelerar a formação de especialistas e garantir o acesso a tecnologias mais eficazes; negociar outras modalidades de apoio e o estreitamento das ligações aos sectores metalúrgico, siderúrgico e químico (...).” (8)

 

Escolarização do saber e colocação de especialistas no terreno; cadastros, arquivos e levantamentos sistemáticos das possibilidades de exploração mineira do país; o gabinete como local de decisão são configurações agora tornadas ineludíveis.

 

Claro que a sobriedade estéril e directa do texto legislativo não esgota o que o regime tem a dizer sobre as minas. Desse ponto de vista, é interessante olhar para o parecer da Câmara Corporativa de 13 de Março sobre este mesmo projecto. (9)

 

Inspirado no modelo do fascismo italiano, Salazar adopta oficialmente um sistema “corporativista” de “representação” dos vários sectores económicos e classes que procura servir de tampão à possibilidade de conflitos. A Câmara Corporativa tem assim as atribuições próprias de um órgão consultivo que sugere alterações (de pormenor) às propostas legislativas mas é também um espaço no qual diferentes interesses chocam polidamente por vezes (neste particular é interessante ver que o texto deste parecer não é unânime porque alguns dos membros consideraram que não protegia devidamente os interesses do sector de transporte ferroviário face ao sector mineiro).

 

Pelas características institucionais, este texto é um exercício pomposamente diplomático entre a crítica de pormenor e o louvor essencial aos propósitos declarados do legislador. Trata-se de um parecer com uma análise detalhada dos vários pontos em discussão e com algumas propostas de alteração.

 

O escrito serve-nos aqui de eco explícito desse contraste pobreza real/sonho de Índias Negras nesta época. O imaginário das Índias Negras é explanado no texto quando se pega no exemplo da transformação magnífica ocorrida nas zonas rurais de Inglaterra: “uma vez encontrada a utilidade dêsse combustível mineral e descoberta tam importante riqueza, tudo mudou naquela região, e a vida tomou ràpidamente, uma intensidade e uma animação extraordinárias, onde tudo era quási deserto, ainda dois séculos atrás.”

 

Obviamente o passado “milagre” britânico colide com a realidade portuguesa presente. É preciso esconjurar essa pobreza por vários meios para manter o sonho de uma Índia Negra nacional. Por um lado considera-se que há um “insuficiente reconhecimento das possibilidades mineiras do País sendo de maior urgência o ferro e o carvão” uma vez que “podem determinar, quasi só por si, o engrandecimento económico de um país e de uma região”. Mas, por outro lado, pensa-se que “apesar de Portugal ser um velho país, muito visitado, muito percorrido e muito prospectado, devem existir ainda vastas regiões cuja mineração poderá, um dia, representar riqueza inesperada.” Ou seja, com enfoques diferentes em momentos diferentes, o texto mostra-se algo hesitante por debaixo do discurso mais enfático que pensa a possibilidade de descobertas enriquecedoras. Simultaneamente o país foi já muito prospectado e falta ainda muito prospectar; investiu já muito esforço no sector e está ainda muito aquém do que poderia fazer.

 

Esta hesitação feita de uma diplomacia argumentativa pretende elogiar o passado reconhecendo ao mesmo tempo insuficiências sem culpar nem melindrar ninguém. Não é com surpresa portanto que vemos o texto inscrever como o seu próprio lema: “bastante tem sido já feito; muito falta ainda fazer.” E se o lema do explorador anterior era o de ir “um pouco mais além para descobrir”, uma narrativa de persistência individualista, o lema é agora de equilíbrio corporativista e de exaltação de esforço nacional feito apenas de leis e de reis: o parecer da Câmara Corporativa começa mesmo com o enquadramento dessas abnegadas tentativas de desenvolvimento mineiro desde os alvores da nacionalidade (saltando convenientemente o período da Primeira República).


 

(8)

João Paulo Avelãs Nunes, op. cit.

"Escolarização do saber e colocação de especialistas no terreno; cadastros, arquivos e levantamentos sistemáticos das possibilidades de exploração mineira do país; o gabinete como local de decisão são configurações agora tornadas ineludíveis."

 

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