(Opinião) O património subterrâneo, a cidadania e a educação
Por Carlos Carujo
Projecto de Cidadania "Dar a vez e a voz aos Cidadãos"
As cidades transformam-se. Não as podemos querer imóveis, paradas no tempo da nossa infância, nem devemos fechar-nos no sonho do regresso a um passado imaginado. Mas também não devemos cair no erro de celebrar a mudança pela mudança, com a febre da modernização desenfreada do eterno presente da moda, um tempo sem passado e sem espessura histórica. Ao exagero regressivo romântico não podemos opor o exagero pseudo-progressista pós-moderno.
A voragem produtivista e capitalista tem sido a principal força motriz da transformação da cidade contemporânea. Assim, tem mandado mais a pressa do lucro do que o cuidado do planeamento. A ela se juntam processos de suburbanização, descaracterização, perda de sentimento de pertença e de vizinhança etc., tendências destruidoras de lugares e de solidariedades. A cidade arrisca tornar-se um espaço cheio de pessoas mas vazio de relações, com algumas fachadas actualizadas segundo a estética preferida no momento mas intrinsecamente feio, atravessado por disfuncionalidades, homogeneizado por um lado mas feito de distinções sociais vincadas por outro.
A contratempo destas transformações encontramo-nos com o património. E é exactamente por isso que é preciso começar por esclarecer que defender o património não implica ficar nessa posição do conservadorismo que procura que tudo fique sempre igual: há coisas que devem mudar, outras que seria bom que permanecessem e as mudanças tanto podem ser para melhor ou para pior. É uma questão de escolhas, ou seja, de políticas públicas.
O que é então isso do património que parece não se encaixar nesta pressão para mudar? O património podem ser muitas coisas diferentes: os monumentos que alguns pensam ser «velharias», os bairros antigos que se procura «modernizar» à força, os espaços naturais que não estão «rentabilizados», as praças desenhadas para serem o espaço comum, lugar de encontros, das controvérsias e das festas. Mas o património é ainda mais do que isso. É o que permite a cidade reconhecer-se nas suas identidades contraditórias e plurívocas, nas suas miscigenações e fluxos de população. O património são ainda as nossas memórias partilhadas, os modos de dizer, de fazer, de criar que guardamos como nossos.
Esta diversidade faz ruir a crença comodista que alguns gostam de cultivar de que não é preciso fazer nada para salvaguardar o património local: o património seria automaticamente imune à força das mudanças porque o seu reconhecimento e defesa seriam consensuais... quando muito discutir-se-ia a sua prioridade no investimento dos dinheiros públicos. Mas se formos para além de uma visão monumental e estreita do património, como é fundamental, descobriremos que a concepção sobre o que pertence a esta esfera de preservação está em discussão permanente. Uma cidade democrática rediscute o que é o seu património. Ao fazê-lo, redescobre-se mais rica e enfrenta desafios mais exigentes.
É importante por isso distinguir. Há um património «domesticado» e fácil, que o poder político gosta de usar na lapela, que se moldou aos interesses económicos do turismo e que, por vezes, é como que forçado a contar uma versão dominante da história que poucos têm paciência e meios para contestar. Esse, não descurando a sua importância, tem habitualmente um lugar cativo na cidade. E, depois, há muitos outros patrimónios esquecidos, insubmissos, subterrâneos. Esses é urgente resgatar porque estão mais ameaçados: não são (re)conhecidos, o seu valor não tem preço, as suas subtilezas e temporalidades próprias são negadas. O passado mineiro de Rio Maior é um bom exemplo de património subterrâneo. Não apenas no sentido em que parte importante da sua história foi o trabalho duro debaixo da terra mas sobretudo no sentido em que se foi sofrendo a sua invisibilização nas consciências e a sua deterioração no espaço da cidade.
O que será preciso fazer para salvaguardar o património que se encontre menorizado? A condição básica é a existência de um poder político democrático, transparente e independente de interesses económicos especulativos. E é fundamental que a este se some a força criativa da cidadania activa, a mobilização dos muitos de que é feita a cidade. Para que esta mobilização aconteça, é preciso que o património seja vivido de alguma forma, que a memória o desvele aos nossos afectos, que o conheçamos e respeitemos. Porque aquilo que não se conhece, não se cuida e poderá assim ser facilmente destruído pela ganância ou pela incúria.
Portanto, este cuidar para que a cidadania está convocada deverá passar necessariamente por um trabalho de estudo e de educação.
Em Rio Maior, a cidadania tem vindo a despertar para a importância do património mineiro que mudou definitivamente a cidade em meados do século passado. Há já muito conhecimento acumulado que pode permitir despertar consciências. Assim sendo, uma das tarefas que se coloca agora será o trabalho educativo sobre este património. Com o património edificado a deteriorar-se e com a lei da vida a continuar a sua acção cega que nos rouba os actores sociais que nos poderiam ensinar mais sobre o passado mineiro, torna-se urgente um plano educativo multidisciplinar para dar a conhecer aos vários níveis educativos do concelho a memória dos trabalhadores, os modelos produtivos, a geologia, o património arquitectónico etc. Todo um currículo local a ser construído participativamente com especialistas, professores, associações e os guardiães destas memórias que poderá permitir que as novas gerações conheçam, cuidem e se mobilizem. É tempo de procurar aprender para depois transformar a cidade para melhor a partir desta memória viva.
Carlos Carujo
Figura 1 - Chaminé da central eléctrica da antiga fábrica de briquetes da mina do Espadanal. © Nuno Rocha, 1999.
"Uma cidade democrática rediscute o que é o seu património. Ao fazê-lo, redescobre-se mais rica e enfrenta desafios mais exigentes."