top of page

Dr. Arnaldo Vidigal Pais (1899-1961). Médico

 

 

 

 

 

Dr. Arnaldo Vidigal Pais

Por Armando Lizordo. In O Sorraia, 2 de Novembro de 1930                        

 

Acaba de concluir a sua Formatura na Faculdade de Medicina de Lisboa, o Sr. Dr. Arnaldo Vidigal Pais, natural da Vila Nova da Erra, filho da Sr.a D. Narcisa Machado Vidigal Pais e de Joaquim Vidigal Pais já falecido, e irmão dos nossos amigos Srs. Joaquim Vidigal Pais, Dist.o Ajudante do Conservador do Registo Predial de Coruche, do Sr. Francisco Vidigal Pais, estabelecido na Aldeia do Couço, do Sr. Pedro Vidigal Pais, também estudante de Medicina e cunhado do Sr. Mário d'Oliveira Durão, dist.o farmaceutico na citada aldeia, tendo em todo o curso, desde os preparatórios, devido à sua inteligência e faculdades de trabalho, alcançado sempre honrosíssimas classificações.

Quem é Arnaldo Vidigal Pais? Era aquela criança, já adolescente,  de alma sonhadora, que concentrada, de poucas falas, sempre isolada, só, em constante meditação, sofria ao ver o seu espírito definhar-se dia a dia por não saber encontrar o Porquê de tudo que a cercava, para a qual a Erra, lugar de eterna treva, estava sendo um cárcere de tão grandiosos horizontes - e para ele tão pequenino; cheio de salutar atmosfera - e tão sem ar para ele; tão iluminado pelo Sol - e tão sem Luz; que sentindo-se, hora a hora, cada vez mais apertado, mais sufocado, mais cego, pela Ignorância que lhe cerrava todas as portas do Saber Humano; um dia partiu  de largada até aos bancos da Escola, aos antros da Ciência, para lá se fazer homem - e fez-se!

Quem é Arnaldo? Era aquele estudantinho de Santarém que em 4 anos conseguiu um curso de 7, e que pelo seu estudo, critério e bom porte, alcançou a estima dos professores, a amizade de todos os seus condiscípulos, a ponto de o elevarem, mestres e camaradas, a representante da Academia Scalabitana.

Quem é Arnaldo Pais? Era aquele Quintanista de Medicina que tu vias passar, ora de capa e batina, ora à frutica, baixo, atarracado, sempre meditativo, já a esse tempo procurado por todas as pessoas suas conhecidas, graças ao renome alcançado pelos seus primeiros serviços clínicos e que vai marcar como médico sabedor, consciencioso, distinto; é aquele que em estudante, em Santarém e Lisboa, tanto se evidenciou como um cérebro inteiramente moderno, por vezes tão arrojado nos seus vôos filosóficos de um racionalista puro que o arrastam a espécie alguma de subordinações até ao ponto de o martirizar a ideia de não poder fazer obedecer cegamente, unicamente, à vontade do seu Eu toda a dinâmica determinadora do cérebro Humano. É esse espírito lúcido que lê, que estuda, que discute e critica e que vai ter um lugar marcado na ala dos combativos. É esse nóvel médico que leu Platão e que abomina Aristóteles, a maior inteligência de todo o mundo e de todos os tempos, quando o vê admitir como útil a escravatura, mas que o fascina quando o ouve proferir as máximas e sentenças filosóficas que o imortalizaram.

É esse homem novo e ilustrado que conhece Mêncio e sobretudo Confúcio, o grande filósofo chinês que em 551 antes de Cristo proclamou o amor pelos seus semelhantes; que sabe que na Idade Média floresceu Bacon, o precursor do Método Experimental e Guilherme Occam, o pai do empirismo inglês; que sabe discutir Galileu, Descartes e Espinosa, os fundadores da filosofia moderna; que critica o arrojo metafísico de Hegel, e não menos o sociólogo Herbert Spencer que com a sua teoria individualista fez assentar toda a sua filosofia na evolução natural pelo que a sua moral social foi considerada como aniquiladora da sociedade; é esse estudioso profundo que não desconhece a teoria dos sentimentos morais de Adam Smith, que atribui à simpatia a moral de todas as acções; esse mesmo que detesta Voltaire quando este crê em Deus ao considerá-lo necessário e útil para a ordem pública, mas o venera quando combate a religião católica por a considerar a entravadora das Luzes, e o admira ainda quando o vê abraçar a moral e a prática da Virtude.

É esse nóvel e distinto clínico que tem lido Gustave Le Bon, que leu o Determinismo e Responsabilidade de A. Hamon e que se tivesse pessoalmente conhecido o colectivista Karl Marx, com ele diria na 1.a Internacional: Proletários de todos os países, uni-vos! Sabe quem foram os anarquistas Kropotkine, o autor da Conquista do Pão e Léon Tolstoi, o reformista que por intermédio do Amor se propunha realizar todas as reformas sociais; e que se tivesse de julgar o tipógrafo Proudhon talvez lhe perdoasse a frase: A propriedade é um roubo!

Não tem segredos para ele a Escola Niilista que tanto preconizou a obra da renovação social não pelos processos da pandestruição mas por meios pacifistas; e com Owen sabe dizer que o homem nasce bom, as leis e os costumes é que o depravam. Também não é segredo para ele que os Padres da Igreja até ao século VII consideravam o comunismo a forma mais perfeita e mais cristã da organização social, para os quais a propriedade privada foi a origem da iniquidade social apelidando de ladrões todos os ricos.

Já sabes, pois, quem é Arnaldo Vidigal Pais? É essa figurinha irrequieta de bom cavaqueador que se magoa de saber que sobre a terra ainda existem castas que não compreende e o enervam, que não admite e combate; é esse espírito superior que não concebe como entre os homens ainda existam fronteiras e entre irmãos possam haver exércitos armados! É esse espírito que cada vez mais se afirma cheio da impetuosidade própria dos génios vigorosos e combativos que sentem a necessidade de profundar, conhecer, meditar, discutir, vencer, impor, e para quem os conhecimentos humanos da hora presente não passam ainda de uma nebulosa indefinida longe da Verdade e da Perfeição.

É esse visionário que com tanta vivacidade nos conta os morticínios da Inquisição, o caso de Calmon e de Sara de Matos; que conhece os grandes vultos da igreja, os discute e combate; que sabe de cor o livro de Emílio Bossi, que leu as Heresias de João Gonçalves, e o Século Hipócrita de Mantegazza. Conhece Ernesto Renan e sabe o que essa invulgar inteligência e fenomenal romancista disse do Cristianismo; como sabe o que o Papa Leão X um dia proferiu: Que a fábula de Cristo é de tal modo lucrativa que seria loucura advertir os ignorantes do seu erro.

Sabe de cor o ano em que a Inquisição foi estabelecida - 1229; sabe quando a introduziram em Espanha - 1481; sabe quando a implantaram em Portugal - no reinado de D. João III.

Conheces a matança descrita na História pela matança de Saint-Bartholomey, sucedida em França, em 1572, no tempo do Rei Carlos IX? Ele que a conte que a sabe em todos os seus pormenores, como minuciosamente sabe o que em Portugal, ali em Lisboa, no Rossio, aconteceu no tempo de D. Manuel I, em 1506, a propósito de um milagre que não passou do reflexo de uma lamparina!

E aqui tens palidamente esboçado quem é Arnaldo Vidigal Pais, a quem os Lentes da Faculdade de Medicina de Lisboa acabam de conferir o Diploma de Médico Distinto.

Para vós, agora, relicário de avançados ideais que, como os socialistas vedes na injusta repartição dos bens todo o mal social; que tanto exaltais a República e que tanto casquinais os maus republicanos que a têm maculado, e que tanto credes no triunfo da vossa Verdade, vai o preito da minha muita admiração pela independência de carácter com que disseminais as vossas teorias de Livre Pensador, nos curtos interregnos do vosso Ouvido Clínico, no intervalo dos momentos caritativos que passais socorrendo os pobres.

Armando Lizordo

 

Figura 3 - Dr. Arnaldo Vidigal Pais, Lisboa, 1931. © Arquivo EICEL1920, Colecção Margarida Vidigal Pais.

Figura 4 - Página da edição de 2 de Novembro de 1930 do jornal O Sorraia.

bottom of page