Memória Oral de Arlino Ferreira dos Santos (4)
RIO MAIOR NOS ANOS 70 (SÉC. XX) -
O PERÍODO MARCELISTA E O 25 DE ABRIL DE 1974
Foi uma década que começou já com a primavera marcelista em andamento, naturalmente também sentida em Rio Maior com elevada expectativa como, aliás, se verificava por todo o país. Deve dizer-se que a ascensão de Marcelo Caetano foi bem recebida no concelho, com a esperança de que alguma coisa iria mudar. Recordo dele as «conversas em família» na televisão, comunicação vista normalmente ainda no café, até pela circunstância da transmissão ser a uma hora em que os mais interessados nestas questões paravam pelo café União. Recordo-me ainda de um homem, já de certa idade, oposicionista ao regime, reformado da indústria de cerâmica que se sentava à mesma mesa, ainda que eu fosse muito mais novo, e recordo da sua opinião avisada que dizia «Ó Arlino, você não acredite totalmente no que está a ouvir. Tenho muitas dúvidas que ele tenha intenção de fazer o que diz, mas mesmo que ele tenha essa intenção duvido muito que o regime mude porque os ultras não o vão permitir». As minhas esperanças, e da grande maioria dos portugueses, foram goradas. Estou convencido que Marcelo Caetano quis fazer alguma coisa, mas não teve capacidade ou força para realizar. Por isso o regime quase nada mudou.
No entanto, e à medida que o tempo passava, percebia-se que alguma coisa iria mudar, até pelo descontentamento no seio das forças armadas, incluindo algumas das suas chefias e figuras mais emblemáticas como os Generais Costa Gomes e António de Spínola, mas sobretudo dos oficiais e sargentos milicianos que tinham a vida alterada por força das mobilizações para a guerra do ultramar. Além disso, vinham da sociedade civil, estavam escolarizados e tinham, portanto, uma outra visão do problema social e político do país. Claro que no nosso grupo discutíamos isso, com cuidado é claro, embora em Rio Maior houvesse outros grupos que analisavam a situação por igual padrão. Em regra, não se tratava de uma oposição partidária, mas uma oposição ao regime, oposição bastante numerosa em Rio Maior.
Lembro que o livro «Portugal e o Futuro», publicado em 1973, tinha aberto a questão ultramarina e trazido para a discussão pública uma proposta de solução política para a guerra. De resto, o livro tinha sido escrito por um militar muito bem posicionado na hierarquia e profundo conhecedor do Ultramar. A reacção que o livro suscitou, em Rio Maior como no país, foi de agrado geral porque apontava para uma solução de compromisso com os movimentos independentistas. Mas, pela reacção que o governo teve, cedo percebemos que a solução teria de ser exterior ao regime. Por isso, qualquer movimento militar era bem acolhido.
No entanto, quando aconteceu o «movimento das Caldas», em 16 de março de 1974, apanhou-nos completamente desprevenidos. Mas o movimento vinha confirmar esse tal descontentamento que existia dentro das forças armadas e também na sociedade civil e nos grupos oposicionistas. As primeiras notícias que correram pela vila deixaram-nos satisfeitos por um lado, mas preocupados por outro. Satisfeitos porque confirmavam o nosso descontentamento, mas insatisfeitos porque desde as primeiras horas se percebeu que mais uma vez um golpe iria abortar. A população riomaiorense teve, globalmente, uma reacção de tristeza pelo falhanço do golpe, mas intuíamos todos que a «coisa» não ficaria por aí e ficou no ar a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, haveria uma nova tentativa. E essa nova tentativa chegou logo de seguida, em menos de um mês.
O 25 de Abril de 1974 apanhou-me no Funchal. Em setembro do ano anterior tinha acordado com minha mulher (que ainda não era mulher) que o casamento seria em 74. Já andava com ela há alguns anos, o que também não era segredo nenhum em Rio Maior. Tínhamos, aliás, feito uma viagem a Palma de Maiorca de quinze dias e foi na sequência da viagem que decidimos casar, não obstante duas exigências que a minha mulher me colocou: tinha que ser em abril e tínhamos que realizar a viagem de núpcias à Madeira. É evidente que disse logo que sim, primeiro porque não tinha nada contra o mês de abril (eu até nasci em abril), depois porque também gostava de viajar e também não conhecia a Madeira.
Casámos a 20 de abril, em Lisboa, num sábado, e seguimos de imediato para a Madeira. No dia 22 de abril, dia do meu aniversário, fomos, ao fim da tarde, dar um passeio no Jardim Central do Funchal e aí um estrangeiro pediu-me para lhe tirar uma foto. Era um cidadão sueco, jornalista, que me informou que no dia seguinte ia partir para Lisboa porque constava que dentro de alguns dias ia acontecer «algo» em Lisboa. Foi, portanto, na Madeira, já no dia 25 de Abril, que vim a ter conhecimento, por volta do meio dia, do «Movimento das Forças Armadas» em Lisboa. Foi nessa altura que recordei o encontro com o jornalista sueco e dei conta do que estava à espera que acontecesse.
Tínhamos ido à Adega de S. Francisco, um sítio turístico onde se provam e compram os vinhos da região. E foi um funcionário que se apercebendo de que nós éramos do continente, nos perguntou se sabíamos o que tinha acontecido. De facto, nada sabíamos, porque na época não havia telemóveis. Ora, foi o funcionário que nos pôs ao corrente da situação explicando que tinha caído o governo de Marcelo Caetano. Como vi que ele estava a dar a notícia com uma certa alegria, pedi que enchesse dois cálices para brindar com a minha mulher, ao que ele respondeu «se não se importa eu encho outro cálice para brindar consigo e com a sua esposa porque, de facto, já era tempo disto acabar». Depois, ainda assisti à chegada ao Forte de São Lourenço do ministro Rui Patrício, do presidente Américo Tomaz e outros. Vi também a satisfação das gentes do Funchal pelo «Movimento».