Memória Oral de Arlino Ferreira dos Santos (5)
Figura 18 - Manifestação popular frente aos Paços do Concelho, após a Revolução. Rio Maior, 1974. © Arquivo da Câmara Municipal de Rio Maior.
RIO MAIOR NOS ANOS 70 (SÉC. XX) -
A COMISSÃO ADMINISTRATIVA E AS PRIMEIRAS ELEIÇÕES DEMOCRÁTICAS
Regressei a Lisboa logo no primeiro dia da reabertura do aeroporto, no dia 28 de abril, quase com honras militares, tal era o «estado de sítio». Logo à descida do avião estavam dois militares que nos agarraram nas malas e as transportaram. Regressámos de imediato a Rio Maior e constatei a transformação na vila e no rosto das pessoas havia alegria e descontracção. O meu grupo de amigos estava também eufórico e tínhamos a certeza, finalmente, que a democracia estava aí. Havia confiança e isso bastava. O primeiro 1º de Maio em Rio Maior foi também um momento significativo de entusiasmo. Recordo que, num dia de chuva, se juntaram centenas de pessoas junto ao Palácio da Justiça e que depois vieram em marcha até à Câmara Municipal, não de desagrado contra ninguém, mas de satisfação pelos acontecimentos. Nesse aspecto as coisas em Rio Maior correram muito bem em relação aos poderes instituídos, até porque quem estava na Câmara ou na Legião eram pessoas de bem, reconhecidamente generosas, as quais se prontificaram de imediato a colaborar.
Entretanto, dias depois, por iniciativa do Movimento CDE, fizeram-se as assembleias populares para se elegerem as Comissões Administrativas que iriam tomar conta das Câmaras por todo o país. Mais tarde fez-se a mesma coisa para as Juntas de Freguesia já com a participação das Câmaras Municipais. É nessa altura que sou abordado por pessoas ligadas ao MDP/CDE no sentido de saberem se estaria disponível para fazer parte da Comissão Administrativa que iria ser eleita por assembleia popular de braço no ar. Quando fui contactado perguntei, naturalmente, quem eram as outras pessoas. Soube então que para a Comissão estavam indicados (e aceite pelos próprios): o senhor Alberto Goucha, para Presidente, o senhor Mário Goucha, o senhor José da Silva Pulquério e o Dr. Francisco B. Barbosa. Este era o grupo de cinco elementos que iria ficar à frente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Rio Maior.
Senti-me na obrigação de consultar a minha mulher, até porque acabara de casar. Pus-lhe a questão e ela logo concordou. Estive, portanto, na Câmara Municipal de 1974 até 25 de Abril de 1976, altura em que houve eleições. Foi um período difícil, mas muito interessante porque nos deu oportunidade de ter um contacto com as populações que eu julgava não ser possível, populações que estavam desejosas de ver alteradas as suas condições de vida. De facto, naquela altura faltava quase tudo: caminhos, estradas, água, esgotos, electricidade. Enfim, a vila de Rio Maior tinha, em grande parte, todas essas coisas, mas o resto do concelho não tinha.
Mas, ao mesmo tempo que exigiam que a Comissão Administrativa fizesse as coisas, prontificavam-se elas mesmo a ajudar. Foram assim alcatroadas muitas ruas em Rio Maior, feitos muitos caminhos rurais, alargadas as estradas com a participação das populações e, em alguns casos com a ajuda das forças armadas (com máquinas de Engenharia). Havia, pois, muita vontade, mas pouco dinheiro para fazer obras. Em certos casos eram as próprias populações que se colectavam para adquirirem materiais. Mais tarde, quase todos os elementos da Comissão Administrativa passaram a estar inscritos nos partidos políticos. No mês de junho de 1974 apareceram os partidos a fazer sessões de esclarecimento (o PS, o PDC, o PCP, o PSD), que realizavam as sessões na sala de cinema, propriedade de minha mulher que sempre a disponibilizou a todos os partidos sem quaisquer contrapartidas.
Foi a partir destas sessões que as pessoas se começaram a dividir e, em julho de 1974, numa sessão de esclarecimento do PS inscrevi-me como militante. O senhor Alberto Goucha nunca se inscreveu em nenhum partido, nem o senhor Dr. Francisco Barbosa. O senhor José Pulquério e o senhor Mário Goucha inscreveram-se no, então, PPD. Foi assim que os partidos políticos se implantaram em Rio Maior, alguns dos quais acabaram por desaparecer. Chega-se assim ao verão quente de 75, altura em que eu era Presidente da Comissão Política Concelhia do PS. Lembro-me bem do dia que deu início ao «mito» de Rio Maior. Começou nos acontecimentos de 13 de julho com o assalto à sede do PCP e da FSP.
Aquilo começou com uma tentativa de tomada de poder no Grémio da Lavoura por elementos afectos ao partido comunista, a maioria dos quais era gente de fora da vila. Eu, por acaso, não estava em Rio Maior nesse dia, tinha ido passar quinze dias de férias ao Algarve. Cheguei nesse dia treze de julho e lembro-me muito bem que, ao chegar ali junto ao cemitério fui mandado parar (o carro era guiado pela minha mulher) pelos militares que nos puseram ao corrente dos acontecimentos. A minha mulher ficou então preocupada porque a nossa casa era mesmo ao pé da sede do PCP, sede que tinha sido incendiada. Mas nada tinha acontecido à nossa casa, tinham ardido apenas alguns papéis que tinham sido atirados à rua pelos ocupantes da sede. A partir deste acontecimento espalhou-se por todo o país, mas foi em Rio Maior que teve maior repercussão porque os agricultores juntaram uma enorme multidão para defender o Grémio da Lavoura.
O movimento de contestação ao PCP foi crescendo nesse verão e culminou com o grande comício na Fonte Luminosa e no 25 de novembro. Lembro-me que nessa altura o Dr. Mário Soares esteve em Rio Maior num grande comício onde estavam não só as pessoas afetas ao PS, mas também os militantes afectos ao PPD e ao CDS. Foi um comício realizado na rua, onde hoje está a entrada para o parque de estacionamento. No dia 24 de novembro houve uma concentração de agricultores em Rio Maior (figura 20) que depois deu nas barricadas da vila. Eu não participei directamente nas barricadas, mas como Presidente da Comissão Política Concelhia tinha a noção do que se estava a passar, uma vez que era um dos elos de ligação entre os nossos camaradas que estavam nas barricadas e o partido em Lisboa.
Com o 25 de novembro e o General Ramalho Eanes as coisas amainaram naturalmente, mas como em todas as revoluções há sempre a tentativa de elementos mais extremistas (neste caso da extrema direita menos democrática), a tentativa de pensarem que a seguir à neutralização de uma força de esquerda, se seguia também a neutralização da outra força de esquerda. Ora, em Rio Maior a outra força de esquerda era o PS. Eu próprio recebi telefonemas no sentido de me amedrontarem dizendo que tinha que mudar a minha opinião ou então teria que sair de Rio Maior. Deixei logo, bem claro, que nem uma coisa nem outra. Mas, de facto, as coisas com o tempo foram desvanecendo e já por alturas das primeiras eleições (1975) para a assembleia constituinte, o PS foi a força política mais votada. Em 1976 para as autárquicas o PSD já tinha uma implantação no país e em Rio Maior.
Tenho para mim que para as populações não havia grande diferença entre o PS e o PPD. A maior implantação do PPD no concelho tem origem nas pessoas que estavam à frente do partido no concelho, eram pessoas carismáticas, conhecidas e com grandes ligações às populações. O senhor Alberto Goucha era sócio e funcionário superior das Caves D. Teodósio, tinha uma ligação muito próxima com o tecido social do concelho, sobretudo o rural por via dos negócios ligados à lavoura. Daí as pessoas sentirem-se atraídas e inscreverem-se no PPD. Não são, portanto, questões de natureza ideológica, até pelo facto de nessa altura não existir grande consciência política. Foi mais em função das pessoas, foram elas que ganharam eleições em Rio Maior, mais do que os partidos.
Por força das circunstâncias eu fui o cabeça de lista do PS às eleições em 1976. Quando foi da feitura das listas fizemos várias reuniões, convites, incluindo a pessoas militantes e outras não, mas todas se recusaram a encabeçar a lista, incluindo o Dr. Silvino Sequeira que tinha acabado de chegar há poucos meses a Rio Maior, era então Professor de História na escola secundária. Ora, quando ninguém se dispõe a aceitar é o Presidente da Comissão Política Concelhia que tem de ser o cabeça de lista, por isso o fui. A minha experiência como vereador eleito na Câmara Municipal foi uma experiência muito positiva. Das primeiras coisas que fizemos foi uma reunião para tomar conhecimento da situação, essencialmente financeira, a qual era muito deficiente uma vez que as receitas eram diminutas. Partimos para o mandato com a mesma disposição dos governos locais até aí, sujeitos às disponibilidades de apoios do governo central para realizar obras. Continuámos a apelar às populações para elas participarem com a mão-de-obra necessária na sequência, aliás, do que elas já tinham realizado desde a Comissão Administrativa.
janeiro - novembro de 2008
Arlino Ferreira dos Santos