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Para a História de Rio Maior na Idade Média (4)

 

 

 

 

 

 

Não foram estas as únicas novidades trazidas pelo século XIV. Como já se indicou, a época trouxe igualmente uma territorialização progressiva dos vínculos paroquiais, promovida pela hierarquia eclesiástica. Com a obrigação ao dízimo de toda a produção agrícola e de toda a actividade artesanal, feita de forma progressiva, mas eficaz, todos os moradores da aldeia se converteram forçosamente em paroquianos da igreja. Em resultado deste processo, esta última perdeu o estatuto periférico que a possa ter caracterizado nos séculos anteriores e transformou-se num espaço central da comunidade. Não apenas por ser onde se pagava o dízimo a Deus, mas porque a igreja era igualmente o local onde se baptizavam os filhos e se celebravam alguns matrimónios, pelos menos os da gente grada da aldeia, que apreciavam a solenidade e a publicidade do ritual religioso. Era ainda aí que se reuniam as gentes, quando necessário, para discutir algum assunto que tocava a todos, ou se organizava uma ou outra festa em que todos também tomavam parte. Mais importante, era no cemitério da igreja que se sepultavam os mortos da aldeia, sendo nela que se cumpriam os rituais adequados e se diziam as orações pelos defuntos, indispensáveis para o eterno descanso. Pela memória dos mortos, mas também pela celebração da festa e da vida, a igreja local convertia-se, assim, num espaço decisivo na sedimentação de uma memória comum, ou mesmo na formação de uma identidade colectiva, distinta das comunidades vizinhas e dos poderes exteriores.

 

Estes desenvolvimentos foram favorecidos por uma simplificação do tecido social da aldeia, com uma maior harmonização do estatuto dos moradores, que se observa desde meados do século XIII. O fenómeno mais significativo consistiu no desaparecimento de um importante grupo de proprietários locais, cujo nome é em regra precedido pelo título de “Dom” (dominus) nos diplomas que respeitam a transações de bens em Rio Maior. São cerca de uma dezena de indivíduos e formam um grupo coeso, que se distingue dos restantes aldeões, da gente simples do campo, e se caracteriza pelas boas relações com os poderes exteriores. Alguns deles, se não todos, tinham estatuto de cavaleiro e eram membros, por certo, da milícia de Santarém, que podia reunir mais de cem cavaleiros. O desaparecimento deste grupo local, num processo que é comum a outras aldeias peninsulares, ou do Sul da Europa, aqui numa cronologia anterior, prende-se com o afastamento da fronteira, que reduz as oportunidades criadas pela economia da guerra, através das razias, dos resgates e das pilhagens. Com o termo dessa economia de fronteira, é provável que o património de alguns deles tenha sido absorvido por instituições mais poderosas, como Alcobaça. Ou que alguns outros mudassem a residência para Santarém, como ocorreu com um dos ramos da linhagem dos de Casal, em resultado da atracção que sobre eles exercia o crescimento do mercado e das comodidades da vida urbana. Não foi esta, contudo, a única transformação sofrida pela comunidade local. No outro extremo da escala social, também se observaram fenómenos semelhantes, com o desaparecimento das formas de trabalho servil (corveias) exigidas pelo mosteiro de Alcobaça aos seus foreiros, ou com a diluição dos dependentes (malados) da Ordem do Hospital entre os camponeses livres da aldeia.

 

Foi esta simplificação do tecido social que permitiu o desenvolvimento de uma comunidade mais integrada, na qual todos têm os mesmos direitos e se submetem a condições de vida muito semelhantes, mas onde todos se conhecem e onde todos comentam a vida dos outros. Não se conhecem as etapas concretas através das quais a comunidade ganhou consciência da sua existência, quiçá da sua própria força. Por inícios do século XIV, assiste-se, porém, à formação de uma elite na aldeia, apta a falar em nome da comunidade. Não se trata já de cavaleiros, nem de ricos proprietários, mas de camponeses, escolhidos certamente entre os mais remediados, ou os mais influentes. São designados, em regra, como os homens bons da aldeia, retomando a expressão usada para nomear os homens da governança das vilas e das cidades. Com frequência, e, também, por certo, com naturalidade, é o testemunho deles que é invocado sempre que é preciso dar conta dos costumes locais, ou resolver conflitos com os poderes exteriores à aldeia. Por volta de 1320, estiveram todos presentes quando o recebedor das rendas de Alcobaça prestou contas ao mosteiro dos montantes que havia cobrado em Rio Maior nos anos anteriores, como se a sua presença fosse necessária para garantir que nada ficara por esclarecer. Para usar uma imagem dos historiadores franceses, são eles os galos da aldeia, aqueles que têm direito à honra da palavra pública e a falar em nome de todos os seus vizinhos.

 

(continua na página seguinte)

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