Para a História de Rio Maior na Idade Média (6)
A autonomia conquistada por Rio Maior não era um fenómeno isolado no vasto termo de Santarém. Estava acompanhada por outras aldeias, como Muge, Montargil, a Golegã e o Cartaxo, e havia casos semelhantes noutros termos concelhios, como a Guarda, Abrantes, Coimbra, ou Tomar, entre alguns outros. As doações régias de aldeias, separando-as dos velhos termos, não foram um processo arbitrário, mas resultaram, ao que parece, de uma selecção cuidadosa, que privilegiara os núcleos mais afastados das sedes concelhias, ou mais povoados. Era o caso de Rio Maior, assim como era esse o caso das restantes aldeias citadas do termo de Santarém, tal como se comprova pelos dados do Numeramento de 1527 (Mapa 1). Todas se situavam a alguma distância da sede de concelho, por vezes na ordem das quatro a cinco léguas, e todas apresentavam, também, uma dimensão demográfica com algum relevo, que contrastava com a maior disseminação dos núcleos habitados em redor de Santarém. Em 1527, Rio Maior tinha 102 moradores, quer dizer, famílias, correspondente a uma população superior a quatrocentas pessoas.
Se todos estes dados estruturais (distância à sede do concelho, dimensão demográfica e autonomia jurídica) foram importantes no desenvolvimento da comunidade local, eles não são suficientes para explicar porque esta se unira em torno das festas do Corpo de Deus, nem porque conseguiu enfrentar com sucesso a oposição do concelho de Santarém. Para compreender o fenómeno, há que considerar outras circunstâncias de natureza conjuntural, que podem ter singularizado Rio Maior no termo de Santarém. A mais importante respeita à alteração do senhorio da aldeia, verificada por inícios do século XV, quando Nuno Álvares Pereira cedeu, em vida, as rendas e os direitos de Rio Maior a Pedro Afonso do Casal, que casara com uma das suas irmãs. A mudança era de peso, quer porque o novo senhor pertencia a uma linhagem há muito associada à aldeia, quer porque nela tinha uns paços próprios, que habitava com regularidade. Tal como noutros casos semelhantes, a situação convidava à partilha de interesses e de pontos de vista, pois todos podiam beneficiar com a distensão dos laços com Santarém e com alargamento da autonomia local. Nada o comprova de forma directa, mas é provável que tenha sido então que se começaram a organizar na aldeia as festas do Corpo de Deus. A mãe de Pedro Afonso do Casal já em 1380 tinha mandado lavrar e dourar uma opa para as celebrações daquela festa, não sendo impossível que se tratasse, portanto, de uma devoção familiar e que o seu filho não tenha abandonado a tradição. Seja como for, o concelho de Santarém só procurou fazer valer os seus direitos nessa matéria dois anos após a morte de Pedro Afonso do Casal (1433), quando o senhorio da aldeia era do conde de Ourém. Mas já era tarde, e, para contestar a iniciativa, bastou aos homens de Rio Maior lembrar ao rei que sempre tinham feito aquela festa na sua aldeia.
Luís Filipe Oliveira
Para saber mais:
Beirante, Maria Ângela, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova, 1980;
Gonçalves, Iria, “As festas do «Corpus Christi» do Porto na segunda metade do século XV: A participação do concelho”, Estudos Medievais, nº 5/6, 1984-1985, pp. 69-89;
Oliveira, Luís Filipe, “Entre a Vila e a Aldeia: A Comunidade de Rio Maior na Idade Média”, Arquipélago: História, 2ª série, vol. 8, 2004, pp. 221-236;
Sousa, Francisco Pereira de, Rio Maior: Apontamentos e Excertos — a Vila, seu Concelho e Comarca, Rio Maior, 1935;
Rau, Virgínia, “Exploração de Ferro em Rio Maior no Século XIII”, in Estudos de História Medieval, Lisboa, Presença, 1985, pp. 24-27.