(Opinião) Imprensa Local: A força da cidadania e os limites do poder
Por Carlos Carujo
Projecto de Cidadania "Dar a vez e a voz aos Cidadãos"
1 - A imprensa local como teimosia
Para além do simples papel, talvez a teimosia seja a chave que nos permite perceber o imaterial de que são feitos muitos dos jornais locais. Uma teimosia que insiste em publicar-se desafiando a lógica de um mercado necessariamente limitado e tendencialmente não suficientemente rentável. Uma teimosia que não deve, contudo, ser lida a preto e branco ou reduzida apenas a idealismo romântico. Uma teimosia feita de espírito de sacrifício, de altruísmo, de amor à terra mas também interessada em manter-se como empresa e em defender os interesses de proprietários e accionistas.
Por um lado, a imprensa local é um instrumento de poder e de disputa de hegemonia à sua escala. A sua geografia própria implica esse esforço de tentar sobreviver entre um público-alvo e fontes de financiamento limitadas tornando-a dependente economicamente de anúncios provenientes dos negócios locais e dos seus interesses ou dos poderes autárquicos, fonte de notícias e ao mesmo tempo de publicidade institucional. Esta sua geografia, que é a escrita preciosa da proximidade, arrisca-se a ser também a pequenez do meio e os seus fantasmas: a intriga, os amiguismos e os ódios de estimação. Ingredientes que se servem igualmente nos meios de comunicação social nacionais enfermos de tantos outros provincianismos mas que aqui se podem ler mais condensados e em alguns casos mais abertamente em tensão com o pressuposto da neutralidade jornalística.
Por outro lado, convém repetir até à exaustão, a imprensa local é o espaço privilegiado da cidadania, nela nascem e se debatem causas e projectos de desenvolvimento local, nela se expressa (idealmente) a pluralidade, nela se aprende a história do que fomos e do que somos, se acarinha o espírito de comunidade e se transforma a proximidade. Daí que em tempos de atomização social, de dissolução do sentimento de pertença, de instantaneidade da comunicação sem contexto, de clique fácil na desinformação emocional, a imprensa local constitui um dos mais importantes motores de resistência democrática.
2 - A imprensa local como ideologia
Com uma letra implacavelmente agridoce, Georges Brassens cantou sobre os “imbecis felizes que nasceram algures”. Brassens, que “suplicava” alhures ser enterrado na praia da sua cidade natal para “passar a eternidade de férias”, não fazia da cantiga uma arma contra quem ame generosamente a sua terra. Dedicava-se antes a caricaturar de forma mordaz os moradores altivos da sua pequenez, os cultores do desprezo chauvinista pela terra alheia, orgulhosos do seu fechamento de ideias e de horizontes.
As palavras de Brassens servem-nos aqui de alerta para um outro perigo: o dos maus usos do localismo por exemplo enquanto concorrência territorial assumida como via única de desenvolvimento local, inveja ou tentação de apoucar o vizinho do lado. Pode-se portanto dizer que o “amor pela sua terra” ao mesmo tempo que é uma força motriz impressionante pode tornar-se uma fraqueza. E sobre este seu outro lado convém que nos detenhamos mais um bocado.
Claro que, pela natureza do seu âmbito, o jornalismo local tende a abraçar uma qualquer forma de regionalismo como sua ideologia declarada ao mesmo tempo que se coloca num espectro que vai do simplesmente “apartidário” ao orgulhosamente “apolítico”. Porém, por detrás da “política única de querer o melhor para a nossa terra” espreitam constantemente de maneira mais ou menos dissimulada outras ideologias. Aliás, se em política autárquica o número de juras descaradas de amor à sua terra costuma ser proporcional ao vazio programático do seu autor ou à tentativa de disfarçar interesses particulares como gerais também no jornalismo não basta invocar esse “amor da sua terra”, quase sempre pedra de toque nas declarações programáticas dos jornais locais, para se escapar por magia às arestas cortantes da realidade, dos negócios e da política. Sublinhe-se ainda que esses tópicos regionalistas (“o melhor para a nossa terra”, “o desenvolvimento”, etc.) implicam a cada momento bitolas e prioridades diferentes, formas diferenciadas de (re)distribuição territorial e social da riqueza, privilegiando grupos sociais diferentes. Portanto, ao invés de escaparem à política local, as páginas de um bom jornal local, ainda que digam o contrário, estarão condenadas a ser políticas no sentido mais interessante do termo porque são parte fundamental do espaço público local.
"(...) a imprensa local é o espaço privilegiado da cidadania, nela nascem e se debatem causas e projectos de desenvolvimento local, nela se expressa (idealmente) a pluralidade, nela se aprende a história do que fomos e do que somos, se acarinha o espírito de comunidade e se transforma a proximidade."